"Os cristãos incluíram uma declaração
estranha no seu Credo. Diziam que criam e desejavam a ressurreição do corpo. Como se o corpo fosse a única coisa que importasse...
Mas haverá coisa que importe mais?
Haverá coisa mais bela?
Ele é como um jardim, onde crescem flores e frutos...
Cresce o riso,
a generosidade,
a compaixão,
o desejo de lutar,
a esperança;
a vontade de plantar jardins,
de gerar filhos,
de dar as mãos e passear,
de conhecer...
E ele transborda as águas
que vão subindo, e
elas saem dele, e
o deserto seco
vira oásis regado. é assim: neste corpo
tão pequeno,
tão efêmero, vive
um universo inteiro, e,
se ele pudesse, bem que daria a
sua vida pela vida do mundo.
Mas o corpo não é só fonte que
transborda: é colo que acolhe.
O ouvido que ouve o lamento, em silêncio, sem nada dizer...
A mão que segura a outra...
O poema, que é a magia que transubstancia o mundo, colocando nele coisas
invisíveis, só reveladas pela palavra...
A capacidade de ouvir as lágrimas de
alguém, longe, nunca visto, e chorar
também...
O meu corpo transborda e fertiliza o
mundo...
Tão simples, tão belo.]
Mas algo estranho aconteceu.
Algo nos tentou, e começamos a buscar Deus em lugares perversos.
Pensamos encontrar Deus onde o corpo termina: e o fizemos sofrer e o
transformamos em besta de carga,
em cumpridor de ordens, em máquina
para o trabalho, em inimigo a ser silenciado, e assim o perseguimos, ao ponto do elogio da morte como caminho para Deus,
como se Deus preferisse o
cheiro dos sepulcros às delícias do Paraíso.
E ficamos cruéis,
violentos, permitimos a exploração
e a guerra.
Pois se
Deus se encontra
para além do corpo, então tudo pode ser
feito ao corpo.
Escrevi estas coisas como
celebrações da ressurreição.
Na esperança da ressurreição dos mortos.
Para exorcizar a morte, que nós mesmos alimentamos com nossa carne.
Invocações de alegria e beleza.
Quem tem alegria e ama a beleza luta
melhor.
Os corpos ressuscitados são guerreiros mais belos porque trazem nas suas
mãos as cores do arco-íris.
E os corpos se transformam então em
semente que engravida a terra para
que nasça o futuro... "
ALVES, Rubem. Eu creio na ressurreição do corpo.
domingo, 2 de fevereiro de 2020
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